O PROCESSO DE JESUS – O DRAMA NO PASSADO E NO FUTURO
No momento da grande catástrofe européia, que começou no ano de 1939, surgiu em um jornal de Munique uma discussão entre escritores, cujo significado é maior do que simplesmente literário. O Problema, sobre o que esses escritores discutiram, surgiu de uma palestra do escritor Kurt Langenbeck. Suas obras dramáticas já eram conhecidas do grande publico, e a sua palestra publica foi chamada: “O Renascimento do Drama e o Espírito da nossa Época”. A palestra desse escritor, despertou grande atenção sobre o novo Drama. A tese desse escritor era a seguinte: só uma vez houve uma verdadeira tragédia, na época grega, com Ésquilo e Sófocles. E o que se chamou depois disso de tragédia, é apenas uma sombra enfraquecida dessas tragédias gregas. O Cristianismo, não pode inspirar uma tragédia, pois é uma “religião de salvação”, olhando sempre para o “lado de lá”, buscando consolo. Por isso, a vivência da tragédia não pode surgir nessa religião. Mesmo Shakespeare, Lessing e Hebbel, nunca produziram uma verdadeira tragédia, nascidas do drama da individualidade, e sim meias-tragédias. É necessário antes de tudo, que na humanidade nasça um sentimento novo e abrangente sobre o “destino”; se quisermos que a força dramática, como o era na Grécia antiga renasça em nossa época. Assim, pergunta o escritor: “Quando surgirá a nova tragédia?” O escritor estava certo, pois o germe da nova tragédia vivia na atmosfera, no destino da nossa época (em 1939). Apenas um limiar tênue e delicado separa hoje os Homens das dimensões divinas dos Deuses, onde vive a força religiosa e artística de uma verdadeira tragédia.
Por ser uma tese falada em um tom consciente e explicitamente forte, não ficou sem levantar contradições, nos ouvintes, e nos leitores dos jornais. Assim foi que o escritor José Magno Wehner, tomou a defesa de Shakespeare e de outros autores dramáticos, pois haviam sido atacados por Langenbeck. E apesar da unilateralidade exigente de Langenbeck, parecia que ele tinha razão, mesmo sendo os argumentos de seus contraditores eivados de uma razão mais elegante. Pois o fundamental na palestra de Langenbeck parecia provir de um pressentimento dramático – apocalíptico – dinâmico, que havia se apossado do destino dos povos do mundo. Se a humanidade atual deseja trazer ao palco dramas artísticos, necessita de uma transformação interior radical. E essa transformação terá que ser tão grande, que nós nem conseguimos imaginá-la. Errado estava Langenbeck quando falou do Cristianismo de maneira generalizada. Pois em verdade ele se referia ao Cristianismo não como religião, mas como representação histórico – confessional- oficial. É claro que também em nossa época, um Drama deveria se ampliar, se desenvolver, para além da força e dos elementos da tragédia grega. Porém, não pertence ao cristianismo, em sua realidade espiritual, a acusação feita por Langenbeck, de ser uma religião fundamentada na “Salvação para o lado de lá”. A salvação, segundo a cosmologia do Impulso do Cristo, foi trazida para esse mundo, não está “do lado de lá”. Ela é a própria Ressurreição, que aconteceu no mundo terreno e nele foi introduzida. E o caminho terreno para a Salvação, é um caminho de provações, que ultrapassa hoje em muito a grandeza e a dramaticidade das tragédias clássicas gregas. O cristianismo tradicional-oficial, não se sente atraído pelas vivências apocalípticas do destino humano; mantém-se em uma zona de temperatura amena, sem se envolver na região das chamas ardentes.
O Apocalipse de João continua sendo um livro hermético para essa mentalidade institucional-eclesiástica. Só poucos indivíduos pressentiram no livro do Apocalipse uma profecia de um drama e uma tragédia humanas da atualidade, que ultrapassa em muito as antigas tragédias gregas. Hoje, na época Micaelica em que vivemos, o cristianismo só pode se manter vivo, se é inspirado, estimulado pelo Apocalipse; ampliando-se para a sua grandiosidade cósmica. O Arcanjo Micael é o regente dos destinos humanos, estimulando os povos e indivíduos sem poupá-los e afagá-los. Ele é o próprio espírito do Drama e da Tragédia. Ele é o servo do Cristo; aquele que passou pelo caminho trágico e dramático do inferno, para a Ressurreição. Tem porém razão Langenbeck, quando cobra a necessidade de uma religião fundamentada em um Drama forte, mais atual e moderno que o das tragédias gregas.
Porém, isso deveria ter o sentido de acordar a humanidade adormecida para o que já está presente, e não é percebido. O Mistério do Cristo guarda em si essa nova religião. E o cristianismo do futuro, irá se relacionar com o cristianismo histórico, assim como o verdadeiro Drama, se relaciona com a Poesia Parnasiana. Poder-se-ia dizer, que estará na mesma relação que o Apocalipse de João está para com os Evangelhos; pelo menos na compreensão que se tem hoje dos Evangelhos. E se o Apocalipse for percebido em sua força espiritual, mudar-se-á a relação com os Evangelhos. Ver-sê-los-á em uma nova luz. Pois então ver-se-á, à luz do Apocalipse, nos Evangelhos, o ímpeto dramático e trágico do Apocalipse. O verdadeiro Drama, a verdadeira Tragédia, a qual necessita a humanidade, já é realidade nos Evangelhos.
Se entendemos os Evangelhos, percebemos que eles são, por excelência, o Drama-Primordial da humanidade. E se nos elevamos para lê-los e entende-los com a inspiração do Apocalipse, surge à nossa percepção e compreensão uma obra dramática de um elevado nível artístico. Estamos diante do palco da verdadeira e impiedosa Tragédia. E apesar da fineza de sentimentos em relação às tragédias gregas antigas, um escritor como Langenbeck não chega a perceber o contexto espiritual histórico do nascimento do Drama. Pois, tivesse o escritor um pressentimento nesse sentido, não deixaria de ver as semelhanças entre as obras dramáticas de Ésquilo e dos Evangelhos. Pelo menos o escritor deveria sentir, perceber a relação intima na composição dessas obras, aparentemente tão diferentes entre si. Pois, como na época Pericliana, assim também na cultura ocidental, o Drama surgiu dos Templos de Mistérios. E quando Ésquilo e Sófocles escreveram suas tragédias, em parte conscientes, e em parte inconscientes, contribuíram para tornar publico os mistérios. Ésquilo foi acusado de traidor dos segredos dos Mistérios, por colocar no palco aquilo que era guardado como segredo nos Templos de Mistérios. A Lei da Morte e da Ressurreição, regia nos rituais de Iniciação, consumados nos discípulos, no ambiente silencioso dos Templos.
A partir do momento que os Dramas de Ésquilo foram apresentados nos palcos da Grécia, luziu uma centelha da Iniciação, da Lei Eterna nas almas dos espectadores. A relação interior entre as tragédias gregas e os evangelhos é: o Mistério do Gólgota significa a completa e última revelação dos Mistérios. Para além de todos os Dramas, nele foi revelado o Drama-Primordial diante da humanidade. Não é necessário nenhuma apresentação exterior, pois só a vivência interior individual do Destino do Cristo, possibilita a cada ser humano tomar parte nesse Mistério de Iniciação. Nesse sentido, os dramas dos poetas gregos, são como que ensaios, e profecias sobre o Mistério do Gólgota: eles foram a revelação dos Mistérios humanos, que precederam a grande revelação do Mistério Divino, o Mistério do Gólgota.
Foi pelo próprio abandono do cristianismo–histórico-confessional, que surge essa desesperança com a força dramática do Cristianismo. Pois a igreja tradicional, eximiu-se de qualquer compromisso com a vida cultural e artística nos últimos séculos, passando a mera administradora de um mundo “do lado de lá”. Porém, temos que reconhecer, que, para uma revitalização, um ressurgimento da força dramática na alma humana, há que buscar-se-la nos evangelhos. O Drama de Mistérios do futuro, para não ser uma mera renovação dos antigos dramas gregos, necessita encontrar sua força no Drama-Primordial central da humanidade, que ocorreu no Gólgota.
CAIFÁS, HERODES E PILATOS
Na ultima cena da vida de Jesus, antes que a noite envolvesse o Gólgota, surge um Drama com toda a clareza e precisão característica dessa arte. Mesmo em seu acontecimento público, configura-se de forma teatral, nos assombrando. A imagem primordial do palco, das cortinas, e do espaço para os espectadores, está lá, no momento do “processo de Jesus” diante do palácio de Pilatos. Essa cena acontece envolvendo vários personagens e acontecimentos, como imagens primordiais dramáticas.
E enquanto os teólogos nunca se inteiraram da configuração dramática dessa passagem dos evangelhos, houveram escritores de peso, que por sua própria intuição compreenderam a dramaticidade dos acontecimentos da Paixão e deram-lhe forma, compondo dinamicamente um Drama de Mistérios que pertence aos evangelhos. Por exemplo, em um Drama do escritor Augusto Strindberg, há uma cena que trás luz as imagens primordiais humanas de Caifás, Pilatos e Herodes.
Herodes e Pilatos conversam na entrada do Templo. Herodes, exaltado, por uma inquietude emocional, aparece como alguém que tem estranhas e fantásticas idéias a respeito de Jesus de Nazaré, semelhantes aos de mistérios ocultos:
Pilatus – “Fale, Herodes! Teu coração está cheio, e teu espírito inquieto.”
Herodes – “Sim! Eu deixei executarem a João, e pensei: acabou-se!
Agora, porém, lá está ele.”
Pilatos – “Jesus não é o mesmo; é outro.”
Herodes – “Tu pensas assim, porém,eu creio: João ressuscitou!”
Pilatos – “O povo cria: João era o messias, porém, João indicava a Jesus.”
Herodes – “Posso ver esse Homem, de quem todos falam?”
Pilatos – “É difícil, pois ora ele está aqui, ora está ali.”
Herodes – “Talvez ele seja um mágico ou encantador, assim como tantos outros em nossa época.”
Pilatos – “Pode ser, porém o povo crê ser ele o Messias, que libertará o povo…”
Pilatos e Herodes decidem perguntar a Caifás sobre o mistério de Jesus. Nesse momento começa um tumulto no Templo. Eles pensam tratar-se de um tumulto causado pelos partidários do culto Judeu com os partidários do culto romano ao César. Como a imagem de uma transparência, surge a contradição histórica entre o Cristo e o César romano.
Pilatos – “Perguntemos ao Sumo-Sacerdote, pois ele tem que saber!”
Herodes – “Há um tumulto no Templo!”
Pilatos – “Eu sei a causa do tumulto!”
Herodes – “Estão a colocar a imagem do César no Templo?”
Pilatos – “Isso mesmo. O nosso generoso Imperador Tiberius vive como um loco na ilha de Capri. E é espancado por seu sobrinho Calígula. Os seus filhos vivem amasiados com as suas próprias mães. Isso porém, não impede o Imperador de ordenar a sua adoração como Deus…”
Agora, surge Caifás em cena e junta-se aos dois. Ele relata aos dois o que realmente acontece, qual é a causa do tumulto. Herodes, que não consegue segurar sua curiosidade e anseio, pergunta a Caifás, se ele poderia ver a Jesus. Caifás ensina a Herodes, que Jesus, sempre que é espionado por seu enviados, desaparece.
Caifás entra em cena e encontra-se com Pilatos e Herodes:
Herodes – “Que tumulto é esse no Templo?”
Caifás – “É o galileu, que leva o povo ao tumulto! Agora ele tornou-se
violento, e expulsa os comerciantes do Templo.”
Herodes – “Se ele está lá, queremos ir vê-lo!”
Caifás – “Ele já se foi!”
Pilatos – “Diga-nos, Sumo-Sacerdote, o que se passa com esse Homem? Acreditas que ele é o Messias prometido ao povo Judeu?”
Caifás – “Como poderia crer nisso! Um simples filho de marceneiro,
que é doente da cabeça? Longe de mim com essas idéias!…”
Essas cenas, simples e dramáticas, mostra-nos o que vive nos evangelhos, como arquétipos do Drama moderno. Podemos perceber a curiosidade de Herodes; a sua superficialidade interesseira no lidar com o supra-sensível. Em Caifás, surge o elemento da frieza superior, do desprezo e do ódio. Pilatos está em uma postura de pesar, medir as coisas, refletindo sobre elas, como que mantendo o equilíbrio entre os dois outros personagens.
Essas três pessoas, com suas posturas, dão o tom no palco do acontecimento dramático do Gólgota.
Essas cenas passam-se no limiar para a Sexta-feira Santa. E somente necessitamos contemplar essas cenas, que aconteceram antes de surgir o dia, para percebermos o drama transparente do Mistério da Humanidade.
Essa foi uma noite cheia de mistérios, entre a Quinta-Feira Santa e a Sexta- Feira Santa. Na noite, brilhava, espalhando a sua luz prateada pelos vales e desertos a lua cheia. Peregrinos haviam vindo em tumulto para a cidade de Jerusalém, para o Pessah, a Páscoa dos Judeus. Nessa noite, as casas estavam cerradas, ninguém ousava sair às ruas. Nas Casas, vigiava-se, recordando-se da noite de terror no Egito, quando o Anjo da Morte passava de casa em casa. Todos criam, que nessa noite, repetia- se o acontecimento da noite de terror no Egito. Depois da meia-noite, o vento que soprava do deserto teria assustado qualquer um que deixasse sua casa e se aventurasse pelos becos da cidade. Só um pequeno grupo de Homens ousou contrariar os costumes dessa noite, dirigindo-se através do vale do rio Cedron, para o jardim de Getsêmane. Sentia-se na solidão dessa paisagem uma verdadeira solidão; um abandono. O mundo estava abandonado, jazendo entregue a morte. E depois da prisão do Cristo no Jardim das Oliveiras, seguiram os mercenários com o seu prisioneiro para o Palácio de Caifás. Pedro os seguiu, juntando-se aos criados ao redor do calor das brasas.
Nesse final de noite, no inicio do amanhecer, aumentou de intensidade o vento do deserto que soprava, participando assim a natureza da atmosfera espiritual dessa Sexta-feira Santa. Também na parte da tarde desse dia, iria a natureza manifestar-se, pelas trevas que escureceram o próprio dia, expressando assim a força do supra-sensível no natural. Nesses dias de lua cheia, é bastante incomum que haja acontecido um eclipse total em pleno dia. Comum nessa época do ano, na região onde aconteceram esses fatos, é que surjam ventos que sopram do deserto, poderosos e quentes, e que são chamados de Chamsim. Esses ventos, surgem de alturas indescritíveis do deserto ao redor de Jerusalém, elevando nuvens de areia do deserto, para além de cem metros de altura. Essas nuvens enormes de areia, cobrem o sol com uma cortina espessa e pesada, sufocando a atmosfera e impedindo a respiração. E por momentos, toda a vida terrena é separada, apartada da vivência e da relação com o Céu. Todas as criaturas buscam ansiosas por ar fresco, gemendo sob a atmosfera densa e pesada, que transformou o frescor do amanhecer em um calor sufocante e irrespirável.
Quando os mercenários subiram o vale do rio Cedron para a cidade de Jerusalém, ainda era noite. A atmosfera gélida da morte ainda dominava, penetrando nos ossos daqueles que caminhavam em direção a cidade. E ainda para adensar a atmosfera, e endemonia-la, brilhava a luz fria e gélida da lua cheia.
As pessoas, que conduziam Jesus preso, nessa paisagem noturna, pareciam encarnações de fantasmas, saídos do Hades. Diante de dois Tribunais, seria colocado Jesus. Um deles, dentro de uma casa, vizinha ao Cenáculo. As formas da primeira construção do Sacro-Santo, construído por Davi sobre o Monte Sião, eram o fundamento dó prédio onde ocorreu, no andar de cima, o acontecimento da Quinta-feira Santa. No lugar do antigo Templo de Sião, onde Davi mandou construir uma capela, para guardar a arca da aliança, está a casa do Cenáculo, uma casa dos Essênios, onde Jesus e seus discípulos celebraram a Ceia da Páscoa. Para o lado Norte desse lugar, estavam, no tempo de Davi a casa dos sacerdotes onde morava o primeiro Sumo-Sacerdote Sadoque. Ele foi o primogênito da casta dos sacerdotes Saduceus. No lugar onde era a antiga casa dos sacerdotes, sobre os seus fundamentos, está o Palácio do Sumo-Sacerdote, para onde Jesus é conduzido por àqueles que o aprisionaram no Jardim de Getsêmani.
O Evangelho de João, que nos relata em detalhes esses acontecimentos dramáticos, nos conta: Jesus foi conduzido diretamente para a casa de Caifás, e não para o Sinédrio, onde se reuniam Fariseus, Saduceus e Escribas, formando o Conselho Superior dos Judeus. Jesus foi levado diretamente ao Chefe dos Saduceus. Aqui, não imperava entre os saduceus o Sumo-Sacerdote, senão que o senil, esclerosado e avarento Hannás. Os dirigentes da casta dos Saduceus seriam os que dirigiriam o drama da política judaica, que se consumaria. Eles amarraram os fios, para conduzir essa peça dramática, usando a alucinação fantástica que Judas tinha a respeito do Messias. A realidade desse drama é, porém, outra. O dirigente dele é invisível, tornando-os a todos, simples personagens, que necessitam cumprir com o seu papel no palco. Esses saduceus são, por isso mesmo, os menos humanos de todos os personagens. Eles são fantasmas, demônios que regem sobre as trevas, que odeiam a Luz, e crêem ter o poder de obscurecer a luz do sol que surge no horizonte, anunciando o dia.
E também diante de um outro tribunal, Jesus é levado nessa noite. A noite dos fantasmas continua. Agora, parecem ter-se juntado ao imperador das Trevas, e a toda sua legião de subordinados. O Sinédrio, com suas sete autoridades, reunidos sob a autoridade de Caifás, não é nada mais nada menos que uma legião de demônios das trevas. As autoridades, vestidas de preto, são a própria caricatura dos pensamentos humanos, que, sem forças do coração, não conseguem compreender a verdadeira realidade. Ao ódio que se revela no encontro dirigido por Hannás, junta-se aqui à mentira destruidora. Falsas testemunhas aparecem; demônios que encenam falsidades para o mundo. O mundo exterior da natureza está em perfeita harmonia com o que ocorre no interior dos tribunais. Fora uiva o vento frio e gélido pela paisagem prateada na refletida luz da lua. Esse é o mundo de Caifás.
E quando terminou a sessão com Caifás, seus mercenários levaram Jesus pelas ruelas de Jerusalém até o palácio de Pilatos. Nesse momento, surge o sol! Nesse momento, surge o vento do deserto e traz o mormaço abafado e quente para a cidade. Uma cortina de areia cobre o levantar do sol no horizonte, tornando a sua luz clara em uma atmosfera esverdeadamente esquisita. O caminho segue pela praça do Templo. Como se toda a história da humanidade, todo o Antigo Testamento fosse relembrado de maneira resumida. A noite transforma-se em dia, porém no dia mais trágico da história da humanidade.
Pilatos sai de seu palácio. Ele é obrigado, mesmo que contrariado, a ouvir a acusação contra Jesus, que os fantasmas, surgidos da noite, nervosos e exaltados lhe gritam. Percebe-se que o calor sufocante e abafado torna possessos os cérebros dos mercenários e dos dirigentes dos Judeus. O digno procurador romano, em sua túnica branca, deve ter limpado varias vezes o suor que encobre o seu semblante, para manter a consciência clara e objetiva. As cenas seguintes, revelam-nos o que vamos olhar em detalhes.
No dia pleno, muda outra vez a cena. Pilatos é informado que o acusado é da Galiléia, e torna-se aliviado. Ele espera poder passar a outro a carga de julgar esse acusado, e o envia a Herodes, que era o responsável pela Galiléia. E por acaso, encontrava-se Herodes em Jerusalém. Jesus é levado a Herodes. E, assim como antes do amanhecer, o vimos ser conduzido pelas figuras fantasmagóricas de seus algozes, diante da figura de Caifás; agora o vemos, em plena luz do dia, envolto no calor mormacento, ser conduzido a Herodes. Como combina a atmosfera exterior quente e pesada, com a de Herodes. Não é a toa que em antigas peças teatrais, Herodes é representado vestido por uma veste vermelho fogo. Ele tem algo de “4confuso”, “emocional” e “imprevisível”, ligado ao excesso de calor do dia, assim como Caifás o tem com a escuridão da noite. No Palácio do Sumo-Sacerdote, Jesus foi envolvido no hálito frio e odiento das mentiras. Agora, é envolto na curiosidade gososa luciférica. Herodes diz: “Há muito desejava ver esse mágico e clarividente!”
Caifás e Herodes são pessoas de extremos apostos. Pois neles estão frente a frente, em oposição, o preto (Caifás) e o vermelho fogo (Herodes). Nós podemos com isso perceber, que Pilatos, com a sua túnica branca, de procurador romano está no centro, entre os extremos.
Essa trindade arquetípica é ricamente representada nesses acontecimentos. Apesar de Caifás ser o representante do mundo judaico, há uma eminência parda por detrás dele. E esse personagem, faz surgir a sombra do que aparentemente é suave no diplomático Caifás: é o velho centenário, esquelético e avarento, Hannás! Mais explicito ainda do que em Caifás, surge-nos em Hannás, o homem tornado Ahriman. Os elementos do ódio frio e calculista, e o egoismo cobiçoso tomam forma nele. Mas também por detrás de Herodes, há um personagem que faz aumentar sua virulência: Herodiades! Ela é a força que move a Herodes, em tudo o que ele faz. Ela é a bruxa, a Senhora do castelo pavoroso de Macários, que consegue de Herodes a cabeça decapitada de João, o Batista. Como um Lúcifer feminino, Herodiades segura a bandeja com a cabeça ensangüentada de João em suas próprias mãos.
Como um Lúcifer encarnado como Homem, ela está presente, ao lado de Herodes, quando Jesus é trazido e apresentado. Ela é a que, inspirada por um hálito de magia e profecia ao mesmo tempo, manda vestir Jesus com uma veste alva e branca, provocando-o. Pois a veste branca e alva é a própria imagem do corpo luminoso da ressurreição, criado pelo próprio Cristo.
O NOME DE PONCIO PILATOS
O pêndulo dos acontecimentos leva-nos, agora, novamente ao centro. Diante de Pilatos acontece o processo de Jesus. Sobre Pilatos, deve refletir cada cristão, pois não há um culto cristão sem que, em um devido lugar, o nome de Pilatos seja nomeado. Em todos os “credos” de todas as confissões cristãs, está escrito: “sofreu a morte de cruz sob Poncio Pilatos.” Nas trilhões de vezes, em que esse nome foi clamado em alta voz, surge imediatamente a imagem do procurador romano vestido em sua túnica branca. Qual é o mistério humano desse personagem?
A estranha expressão, usada correntemente em trâmites burocráticos, intermináveis e obscuros, diz assim: “ir de Poncio a Pilatos”. Essa expressão pode nos levar a pressentir o enigma do nome Poncio Pilatos. Quando nós começávamos a nos acostumar com as celebrações do novo culto na Comunidade de Cristãos, encontrei de maneira inesperada um rastro desse mistério, oculto por detrás desse nome. Além da experiência interior, de se poder ter outra vez altares para a celebração, está a vivência do espaço com as suas dimensões, para a direita, a esquerda, frente e fundos, que tem de ser preenchido de forças anímicas. Desde o inicio, o altar era para nós algo vivo. E no mundo das forças radiantes, obscuramente pressentidas até então, amadurecemos para a realidade, que certas partes do ato cúltico são celebradas do lado esquerdo do altar, e outras do lado direito dele. Naquela época, eu me ocupava com o assunto seguinte: será que o clero católico conhece a diferença entre os dois lados do altar; será que tem algum conhecimento consciente disso? E assim que encontrava uma oportunidade, eu dirigia a padres católicos a pergunta: que sentido vêem vocês nas mudanças da missa para um lado e para o outro do altar? A resposta que eu recebi, nas várias vezes que coloquei essa pergunta foi: “sobre isso, nunca ouvimos nenhuma explicação!” Alguns deles, vários, porém, juntavam a essa expressão, uma outra explicação, em tom humorístico: “a nós era dito que isso se chama – ir de Poncio a Pilatos!”
Não encontrei, porém, nenhum sacerdote católico que soubesse explicar-me alguma coisa além disso. Apesar disso, percebi, que aqui havia algo hieroglifado, imaginativo, parcial, provindo de uma tradição oral oculta de tempos antigos.
Nesse sentido, tornou-se-me clara a relação de uma indicação dada por Rudolf Steiner sobre o enigma do nome “Poncio Pilatos”. Pois o nome “Poncio Pilatos”, não é simplesmente um nome romano, senão que uma latinização de uma “denominação dos mistérios”. Esse nome vêm do grego Póntos Pyletós, que se pode traduzir, simplesmente por: “Mar estreito”. Porém, quer em verdade dizer: Mar com Portal, o mar pelo qual se sai através de um portal de colunas. Pode-se pensar na antiguidade, onde se falava das “Colunas de Hércules”, no estreito de Gibraltar. Vivenciava-se nesse estreito, um portal, por se encontrar no limiar entre o mundo terreno e os mundos espirituais. Esse seria o mesmo portal, limiar, por onde a alma humana passaria depois da morte. Semelhantes imaginações surgiam no mundo antigo, em relação à Bósforo e Helioponto, os portais do mar estreito, que levavam do Mar Mediterrâneo ao Mar Negro. Porém, como denominação dos mistérios, o nome Póntos Pyletós não indica uma localização geográfica, mas sim um lugar no Mundo das Almas. Pelo Mar do Mundo das almas, chega o Homem que persevera, ao Portal dos Mundos Espirituais.
E aqui, ele necessita atravessar esse limiar decisivo. Pilatos tem um nome que provém de uma “denominação dos mistérios”; e isso não é algo casual, senão que pertence às verdades imaginativas do ultimo ato do drama do Cristo. A figura de Pilatos, mostra-nos, pelo que um Homem tem que passar, quando o seu destino o leva ao limiar, ao Portal dos Mundos Espirituais. E quando o nome de Pondo Pilatos é falado, surge no intimo da alma um eco, que é válido para todos os Homens: “o Homem no Limiar”. Nas lendas da idade média, encontram-se muitas indicações e significados do nome de Poncio Pilatos. E muitas dessas indicações, lembram-nos a lenda de Judas. Como passagens dramáticas exteriores, são relatadas experiências, que são, em sua realidade, vivências da alma. Assim é que o nome Pontius, é descrito em uma lenda, em que o jovem Pilatos “amansou” uma tribo de Homens selvagens, em uma ilha que tinha esse nome “Pontus”. Esse hieróglifo imaginativo, mostra a origem da “denominação dos mistérios”, que está oculta por esse nome. E talvez, seja uma indicação de que Pilatos, em sua juventude, já estava em relação com as correntes de mistérios.
Se levarmos em conta o que ressoa oculto no nome de Pilatos, não acharíamos mais sem sentido a troca de lado do altar na celebração ser denominada de “ir de Poncio a Pilatos”. Cada altar, onde um verdadeiro culto é celebrado, é um portal para os mundos espirituais. Ali tocam-se elementos terrenos e celestes, que, pela oração, devoção e veneração chamam esses mundos celestes para o terreno. Os dois lados do altar, são as colunas, que formam o portal, o limiar para um outro mundo. Nós veremos, que o evangelho, com a cena que ocorre a frente do palácio de Pilatos, nos leva a imagem primordial do palco, assim como a do altar. A formula de mistério expressa no nome de Pilatos, confirma ser Pilatos, entre Caifás e Herodes, o Homem do Meio, isto é: o que é propriamente Homem.
Antes porém, de passarmos a cena com Pilatos, olhemos mais uma vez o Processo de Jesus em sua dramaticidade. Nós acompanhamos Jesus diante de três instâncias: Caifás, Herodes e Pilatos. O que mais nos mostra as diferenças desses três mundos, é o comportamento do Cristo com cada um deles. Ele se comporta de maneira diferente com cada um deles.
Lá está ele, na noite fantasmagórica, diante de Caifás. E esse diz a ele:
“Eu te conjuro pelo Deus vivo; diga-nos: és tu o Cristo, o Filho de Deus?”
Jesus não nega a resposta, porém, a maneira como ele responde, é uma exigência ao que pergunta. O interrogador deve entrar em uma intensa atividade espiritual, se quiser ter a resposta a essa pergunta. Essa atividade interior e individual é a força que emana do próprio Cristo. Em uma tradução simples, dizer-se-ia que as palavras do Cristo foram:“Tu o dizes!”
Em verdade, há uma força potente e grandiosa nessas três curtas palavrinhas. O seu sentido é:“Tu precisas dizê-lo!”
Se em Jesus entrou o Cristo como Homem na existência terrena da humanidade, o Filho de Deus, devemos saber, que isso só pode ter um valor para a humanidade, se um Homem, por si, o reconhece e o confessa. O Cristo porém, não deixa essa resposta assim, como um apelo curto. Ele responde a pergunta sobre o Filho de Deus, com palavras fortes e grandiosas:“Sim, eu te digo, de agora em diante, verás o Filho do Homem sentado a direita da Força, vindo nas nuvens dos Céus!” (Mateus, 26:64).
Essas palavras, são como um golpe de um instrumento cortante, como um golpe certeiro e forte de espada no que ouve. Dentro das trevas fantasmagóricas dos pensamentos dos adversários, luze com a força de um raio os pensamentos luzentes do Cristo sobre uma nova época no mundo. As lutas travadas nos dias anteriores, com os comparsas de Caifás, nas muitas discussões, surge agora luminoso, nos seus pensamentos, triunfando sobre as trevas.
Muito diferentemente comporta-se o Cristo diante de Herodes. O Evangelho de Lucas nos mostra a excitação feminina e a curiosidade com que Herodes aguarda Jesus chegar:“Quando Herodes viu Jesus, alegrou- se muito, além da conta; ele tinha esperanças de ver um Sinal dele!” (Lucas, 23:8,9).
Jesus, porém, não fala com Herodes. Não responde, nem dá importância a nenhuma de suas perguntas. Ele se cala, imutável. Em uma dignidade inabalável e distante está Jesus diante do poderoso Lúcifer, que toma forma humana na figura de Herodes. Lúcifer é um ser muito poderoso, de épocas primordiais, mas que já foi derrotado. Diferente é o confronto com o poderoso Ahriman, que se encarna e fala por Hannás e Caifás. Esse espírito da inteligência gélida ainda celebrará o seu triunfo sobre a humanidade, em um futuro próximo. E será necessário que em um futuro próximo, possamos vencê-lo. Esse embate do impulso do Cristo com o poderoso impulso satânico do Anti-Cristo, se dará na “vinda do Filho do Homem nas nuvens dos Céus”. Por isso, o Cristo não se cala diante do adversário Ahrimanico, assim como se cala diante do adversário luciférico. Ele luta pelo futuro da humanidade, quando diz essas frases a Caifás, com a força de um mistério moderno, atual. Nesse momento, onde a luta entre o Cristo e Ahriman-Caifás atinge o seu ápice, surge a aurora, na manhã da Sexta-feira Santa.
Outro, porém, é o comportamento do Cristo diante de Pilatos. Ele não se cala. Ele também não fala palavras cheias de força e mistério, por sobre as cabeças dos Homens, como raios de luz cósmica. Frente a Pilatos, Jesus está pronto para conversar, dando respostas e colocando perguntas. Aqui, nesse encontro vê-se um Homem diante de outro Homem, e conversam.
O PALCO DA CENA
A cena com Pilatos, exige de nós uma olhada comparativa com todos os evangelhos. Nos quatro evangelhos, encontramos uma descrição completa desse encontro. Além disso, porém, em cada um dos evangelhos, surgem-nos detalhes diferentes dele. Eles nos relatam o processo de encarnação do Cristo no plano físico, onde há a exigência, nos três primeiros evangelhos, de uma percepção acurada. Em nenhuma outra passagem dos evangelhos, somos levados a juntarmos as diferentes descrições desse encontro. Cada evangelista dá a sua contribuição para o todo esse processo. Assim, juntando, somando os fatos e detalhes dos evangelhos, surge-nos em todos os detalhes concretos, o ocorrido diante e no palácio de Pilatos.
Para isso, é necessário perceber, que o evangelho de João nos traz uma preciosa contribuição para a compreensão biográfica desse momento. O seu relato desses acontecimentos é incomparável, explicito, rico e muito mais objetivo que o dos outros três evangelhos. Pode-se perceber, pelo relato desse evangelho, que ele nos leva as alturas mais amplas do espírito, e ao mesmo tempo aos mais profundos processos ocorridos no plano físico. E é no evangelho de João que encontramos a possibilidade de juntar, com sentido, as “aparentes” semelhanças dos outros três evangelhos. Nesse evangelho, pode-se perceber um Drama em três atos, plenamente diferenciáveis. Esses três atos, podem ser claramente percebidos, pois Pilatos entra no interior do palácio a cada ato. Duas vezes entra Pilatos no interior do palácio, para continuar o diálogo com Jesus, e preparar o desenvolver do processo. Em cada um dos três atos, que ocorrem no exterior do palácio, está uma cena ocorrida no interior do palácio.
Voltemo-nos as cenas do Drama. A frente da fachada do palácio de Pilatos há uma grande escadaria. Sobre ela está o procurador com Jesus. Embaixo, está a multidão possessa, gritando, dirigida por Caifás e os outros membros do Sinédrio. É como se nós mesmos pertencêssemos ao povo, e estivéssemos olhando para as duas figuras no alto da escadaria. O drama começa. A cada um dos três atos, vemos Pilatos e Jesus desaparecer no interior do palácio. Estamos diante de um palco de teatro. A multidão, abaixo, na platéia, é ao mesmo tempo publico e atores. Três vezes fecha-se a cortina, quando Pilatos e Jesus desaparecem do palco para os bastidores, o interior do palácio. Pode-se, porém, perceber, que a simples comparação de um cenário de teatro não é o suficiente para se compreender o que acontece aqui. Pois o drama continua atrás das cortinas, nos bastidores. A multidão sabe disso, e toma parte nesses acontecimentos ocultos com total atenção e concentração. As cenas, que conduzem os acontecimentos do drama, passam-se todas em oculto, nos bastidores. Na situação de uma peça de teatro, mistura-se a situação de um “templo de mistérios”. Aquilo que acontece no interior do palácio, tem um caráter esotérico. Nessa situação, o significado das palavras “exotérico” e “esotérico”, tornam-se-nos plenamente claras e perceptíveis. Na língua grega, “exo” significa “fora”; e “eso” significa “dentro”. As cenas exteriores dão o envoltório para as cenas interiores.
Na cena central dos três atos, dentro do drama Pilatos – Cristo, Pilatos entrega Jesus para ser torturado. Os soldados colocam um manto púrpura nos seus ombros e uma coroa de espinhos na sua cabeça. Isso não acontece “fora”, diante do povo, mas sim “dentro”, atrás das cortinas, em uma sala do Pretório, a casa da guarda dos pretorianos romanos, junto ao palácio do procurador. Antes disso, Herodiades e Herodes debocham de Jesus, vestindo-o com uma túnica branca. Eles expressavam assim o seu julgamento sobre Jesus: nele, não viam um poderoso mago, mas apenas um homem simples e sem culpas. E mesmo os pretorianos romanos, depois de torturarem a Jesus, debocham dele, colocando-lhe por isso o manto púrpura. Eles procedem com ele, como nas escolas de mistérios se procedia com os neófitos. Eram provações e atos simbólicos de iniciação, que naquela época, se tornaram correntes nos costumes dos exércitos romanos. Eles não tinham consciência do que faziam; seguiam apenas um impulso instintivo em relação a Jesus: seria ele um iniciado? De suas vivências ocultas, tinham porém tanto os pretorianos, como Herodiades e Herodes uma falsa representação mental do que era um iniciado!
Tanto Herodes, como os pretorianos, suscitam, sem saber, imagens corretas. A túnica branca e o manto púrpura, revelam realidades ocultas do Cristo. Em imagem, é mostrado aos Homens o corpo espiritualizado do Cristo, que os discípulos contemplaram no monte da transfiguração. O mesmo corpo que percebem como realidade espiritual no corpo luminoso do ressurrecto. O manto púrpura, mostra a imagem exterior do corpo da alma de Jesus, transfigurado e permeado do fogo do amor cristico. Ele é a própria imagem da nobreza e da realeza da vontade sacrifical transformadora e luminosa do Cristo.
No drama, que ocorre diante do palácio de Pilatos, essa cena é a que nos mostra como as realidades ocultas, de “dentro”, são levadas para as de “fora”. Pilatos conduz o torturado, vestido com o manto púrpura e a coroa de espinhos para o alto das escadarias e o mostra ao povo. Que grandiosa transformação não ocorreu com Jesus! Seu semblante, deveria estimular em cada coração, ainda capaz de sentir compaixão, uma tristeza profunda. Por outro lado, isso é uma revelação dos mistérios mais ocultos. Os mistérios mais profundos, das provações espirituais pelas quais passava o neófito, é revelado ao povo. E Pilatos fala, nesse momento, como o Hierofante; como o condutor do neófito pelas provações da iniciação; como o dirigente de uma peça de mistérios. E suas palavras soam significativas através da formula mantrica:“Ecce homo! Vide, o Homem!”
A tradução de Martinho Lutero, para essa expressão, é sentimental e errônea, pois ele assim a traduz: “Vide, que Homem!”. Além dessa tradução não ter em si o significado original, ela se mantém voltada para a simples compaixão humana pelo que sofre. Pilatos, porém, revela, pelo mantra dos mistérios, ocultos nos processos de iniciação, não somente a grandiosidade e soberana nobreza do Cristo, mas sim também a revelação, para todo o mundo, do mistério do ser – humano!
No lado norte da cidade antiga de Jerusalém, até hoje pode-se visitar essa rua estreita, também chamada de “via dolorosa” , e chegar diante do lugar onde Pilatos pronunciou essas palavras. Entre as casas dessa ruela, está, ainda hoje, uma passagem em arco, que une as duas calçadas. Esse arco, que antes era uma passagem, é chamado de “arco ecce homo”. Em verdade, essa passagem, em nada nos pode auxiliar a representar os acontecimentos da Sexta-feira Santa. E quando lá estive, não consegui ver em imagem os acontecimentos desse dia. O único ponto de referencia, concreto, para isso, foi a construção escura e em forma de prisão do Pretório, junto ao palácio de Pilatos. Ali se poderia ver como os soldados pretorianos torturaram a Jesus e debocharam dele, ao mesmo tempo que colocavam nele os símbolos de iniciação dos mistérios. Do cenário, onde ocorreu o arquetípico acontecimento de palco, bastidores e platéia, não se encontra nem o mais simples sinal. Essa ruela, labiríntica, não nos dá nenhuma possibilidade de percepção do que ali aconteceu. Só quando estive uma segunda vez na Palestina, foi que pude perceber aquilo que me foi ocultado na primeira vez, O ocaso levou-me a fazer um caminho por dentro de um mosteiro, que fica perto do “arco ecce homo”, e da “via dolorosa”. Esse mosteiro pertence à ordem das freiras “Damas do Sião”. E seis metros abaixo do nível da “via dolorosa”, nos porões desse mosteiro, vê-se trechos da antiga rua. Lá estão, escondidas, antigas e limpas, as pedras que formavam o chão dessa rua. Nelas pode-se reconhecer as pedras escuras e claras, formando como que um tabuleiro de xadrez. Em algumas delas, estão inclusive riscos, que faziam os pretorianos romanos, jogando para passar o tempo. Leva-se um choque ao perceber, muito abaixo do nível do chão, a rua original, por onde passou o Cristo, e onde o povo gritava exaltado.
Ainda mais surpreso fiquei, quando vi na capela do mosteiro o altar. Foi o mais imponente e belo altar que jamais havia visto em uma igreja católico-romana. Sobre o altar, chumbadas na parede detrás, estão imensas placas de pedra, que antes pertenceram a fachada do palácio de Pilatos. A característica dessa fachada, ali pode-se-a reconhecer, eram os três átrios divididos por três colunas. Por isso, pode-se representar uma fachada trimembrada; cada uma das entradas sendo um portal em arco. As três saídas de Pilatos com Jesus, correspondem as três portas em arco que estavam a frente do palácio. Saíram Pilatos e Jesus sempre pela mesma porta?
As passagens da fachada de Pilatos, chumbadas na parede do altar dessa capela, não foi ainda reconhecida em sua em sua importância histórica. Por isso não serviu para descerrar os mistérios desse acontecimento da manhã da Sexta-feira Santa. O pedaço das escadarias do palácio de Pilatos que foi trazido a Roma e forma hoje os degraus para o altar da igreja “Santa Scala”, suscitou grande admiração dos historiadores. Para a representação desse ato da paixão do Cristo, porém, ela pode trazer mais confusão do que esclarecimentos. Pois se é mesmo que é original do palácio de Pilatos, trata-se de um pedaço mínimo, diante da grandiosidade e suntuosidade das escadarias que levavam ao palácio original. Ainda hoje, como no tempo de Martinho Lutero, os fiéis sobem de joelhos, em sinal de expiação de seus pecados, essa escadinha. De qualquer forma, isso nos mostra, como vive no mais inconsciente da alma humana a necessidade de clareza em relação a esses acontecimentos da Sexta-feira da Paixão.
A fachada com a entrada trimembrada, foi ao mesmo tempo, cortinas e bastidores do palco desse drama de mistérios. E nos mostra, com espanto, que o palco onde ele se passou, serve ainda mais como arquétipo de um altar. As igrejas cristãs orientais, como a grego-católica, a armênia e a Copta, guardaram na construção de seu altar, um principio que de distingue do da católico-romana ocidental. E se adentramos uma dessas igrejas orientais, o altar ainda permanece escondido de nosso olhar. Ele está por detrás de um biombo, chamado de iconóstase, uma parede de madeira coberta de imagens de santos pintadas. Esse biombo, faz o papel de uma cortina, o que dá ao altar um caráter esotérico.
Aquilo que acontece no âmbito do altar, é um “mistério” = “oculto”. A palavra latina “Sacramentum” é a tradução correta da palavra grega “mistério”. A igreja católico-romana, porém, cortou, pouco a pouco tudo o que tinha um sentido esotérico em seu culto, antes de tudo o símbolo das “cortinas” do “limiar”, acabando com a percepção da diferença entre o que está “dentro” e o que está “fora”. O biombo, a parede de madeira que impede a visão do altar, na igreja oriental, possui três portais. O do meio é maior do que os outros dois, sendo chamado de “o portal real”. Somente uma parte do ato cúltico é celebrado frente da iconóstase. A missa oriental tem por isso um caráter dramático, pois o sacerdote celebrante, não troca apenas de lugar para a esquerda ou a direita do altar. Ele passa também para o lado de “dentro”, e volta para o lado de “fora” da iconóstase, também. E mesmo na troca de lado do altar, ele desaparece por um lado do altar, e reaparece pelo outro, passando pelos portais. O importante, na missa oriental é que uma parte dela ocorre diante da iconóstase, do lado de “fora”, e outra parte do lado de lá, o de “dentro”. Algumas partes da missa oriental não são vistas, nem ouvidas pela comunidade. A transubstanciação é uma das partes que ocorre “dentro”, protegido pelas “cortinas”, pelo biombo, a iconóstase. A comunidade sabe o que acontece do lado de “dentro”, mas pode somente ligar-se a isso pela veneração, pelos sentimentos. E justamente por acontecer em “oculto”, desperta um forte fervor religioso nos sentimentos da comunidade. Essa tradição oriental, permaneceu como um símbolo no catolicismo-romano, pois no inicio do processo da transubstanciação, o ministrante toca os sinos, e a comunidade abaixa os olhos e se persigna. Cada um na comunidade sabe que ele não deve erguer os olhos para ver o que acontece no altar.
Assim é que a cena acontecida no palácio de Pilatos, é um ato cultico, aberto pela situação de destino, aos olhos profanos do mundo exterior. O procurador romano assume o papel do sacerdote celebrante. E quando o procurador traz, pelo “portal real” o Cristo no manto púrpura e com a coroa de espinhos na cabeça, mostrando ao povo a imagem primordial do Homem, faz aquilo que deveria acontecer na eucaristia. Pois nela, na igreja oriental, o sacerdote celebrante, sai de “dentro”, pelo “portal real” elevando a hóstia e o vinho no cálice, transubstanciados, diante da comunidade. Ele mostra assim o corpo e o sangue de Cristo para a comunidade. Isso por três vezes; para “dentro” e para “fora”. A expectativa e o anseio do povo aumentam a cada vez. Ele sente instintivamente o que está para acontecer, assim como a comunidade torna-se mais e mais cheia de devoção, por aquilo que acontece longe de seus olhos. No ato cúltico diante do palácio de Pilatos, misturam-se tons obscuros e demoníacos. Como se uma litania entoada pela comunidade de demônios, ressoasse, envolvendo em tons obscuros o acontecimento:“Crucifique-o! Crucifique-o!”
E justamente por que nesse acontecimento, palco e altar se unem, amalgamando-se, podemos nos lembrar de uma lei da história espiritual da humanidade. Tanto o Drama, assim como o Culto, surgiram dos Mistérios. No palco, ou no Altar, é colocado de uma maneira exotérica, diante do povo, o que pode estimular e impulsionar o desenvolvimento da humanidade. Sacramento e Culto são irmãs do Drama. Por isso, antigamente tanto o Altar, como o Palco tinham “cortinas”, lembrando a sua origem materna, no seio dos Mistérios. E se hoje, em alguns meios literários, luta-se por um Drama verdadeiro, há que se lembrar que isso só será possível, se essa inspiração for buscada na vontade de renascimento dos Mistérios. O Conhecimento dos Mistérios, não devem, porém, ser privilégio de um “grupo especial”, senão que devem ser abertos ao publico em geral. Necessita antes de tudo, guardar sua força e substância na produtividade, assim como na antiguidade, as mais variadas artes nasceram do Drama de Mistérios. E também os novos altares, que são necessários cada dia mais à humanidade, conseguirão ser fontes de forças, se cultivarem uma devoção e veneração aos conhecimentos dos mistérios. Não haverá uma nova introdução das “cortinas” diante dos altares; mesmo que até hoje as igrejas orientais mantenham seus “biombos” diante dos altares. E cada vez mais, é necessário que o sentimento interiorizado do “mistério” atue vivamente no culto. Isso, se percebermos, que no Gólgota a grande revelação dos Mistérios aconteceu, que continua fluindo no verdadeiro culto cristão. Reconhecer nas cenas da Sexta-feira Santa a revelação do Drama de Mistérios, dirigido pelo dirigente invisível, e colocado no centro da história da humanidade, significa: contribuir para que o Ato de Consagração Cristão mantenha-se dentro do ambiente do verdadeiro Mistério da Humanidade.
O PRIMEIRO ATO DO DRAMA
Depois de todo o exposto anteriormente, não nos resta nada mais que olharmos, como espectadores, os três atos do drama de Pilatos. Em cada detalhe dos acontecimentos exteriores desse ato fluem substâncias dos mistérios.
Depois do prólogo no palácio de Caifás, começa o primeiro ato: os mercenários de Caifás vêm, com a multidão barulhenta e trazem Jesus para Pilatos. O procurador romano sai de seu palácio. É a primeira hora da manhã. Nesse momento surge o sol no horizonte. As figuras fantasmagóricas irrequietas e agressivas, gritam suas acusações. O Evangelho de Lucas relata, que foram três as acusações contra Jesus:
1. Ele insuflou o povo contra as autoridades;
2. Ele fez propaganda contra o pagamento de impostos ao César; e
3. Ele disse ser o Cristo, um Rei.
Pode-se perceber nessas acusações, que elas foram torcidas ao contrário do que aconteceram. Para a primeira e a terceira das acusações, basta trazer do plano espiritual para o plano político, o impulso do Cristo, para que se coloque o nome de rebelde em Jesus de Nazaré. Por trás da segunda acusação, está uma armadilha preparada com uma pergunta sobre uma moeda. Essa pergunta, para ser entendida, necessita ser vista segundo os cultos demoníacos a César. Tanto Jesus, assim como os seus inquisidores, sabiam que aqui estavam dois caminhos espirituais contraditórios. Quando se falava de César, não se estava falando simplesmente de uma coisa política; pois a obediência a César, fora proclamada como uma obrigação religiosa. A resposta de Jesus à pergunta:“Dêem a César, o que é de César; e a Deus, o que é de Deus!”
Mostra a superioridade de Jesus diante dessa obrigação cesárea. Mesmo estando o trono, o poder de César baixo o poder demoníaco, reconhece Jesus, que aquilo que lhe pertence no plano político, lhe seja entregue. Por isso, quando se acusa Jesus de ser contra propagandista dos pagamentos de impostos, trata-se de uma falsa acusação, de uma mentira deslavada.
Pilatos admira-se, que Jesus não responde às acusações. Ele não consegue mover Jesus a se defender. Jesus mantém-se calado. Agora, surge um hiato. Pilatos tenta ver-se livre da responsabilidade de julgá-lo. Ele exige dos acusadores que o julguem segundo as leis judaicas. E recebe por resposta, que Jesus, segundo as leis judaicas deve ser condenado à morte. A soberania política de Roma, porém, proíbe que os Judeus condenem qualquer acusado à morte.
Pilatos não consegue encontrar uma possibilidade de escape da situação, senão que levar Jesus para “dentro” do palácio e continuar lá o dialogo com ele. Essa é a primeira das cenas interiores. O Evangelho de João narra-nos essa cena com riqueza de detalhes. Ele nos permite ver o que acontece por detrás das “cortinas”, enquanto a multidão espera em excitação crescente o que vai acontecer. Frente a frente, Pilatos faz a pergunta a Jesus:
“És rei dos Judeus?”
Jesus responde com uma pergunta muito estranha:“Dizes isso por ti mesmo, ou outros o disseram a ti?”
A contra-pergunta de Jesus a Pilatos, mostra-nos que muitas coisas já haviam se passado com Pilatos. Podemos perceber que seria falso pensar que Pilatos não tivesse já um certo conhecimento sobre Jesus de Nazaré. Pilatos já se ocupava com a questão do mistério do Cristo. Haviam chegado a ele rumores, que mostravam o Messias como um chefe político que libertaria o povo Judeu. No circulo dos discípulos, Judas era o representante dessa corrente, que esperava um Messias envolvido com a política da época na palestina. E foi Judas o qual, por seu fanatismo, seu mundanismo e agitação, tornou-se possesso por alucinações fantásticas e irreais. Talvez torne-se mais claro para nós, quando ouvimos as palavras da lenda que conta: Judas estava a serviço de Pilatos, e tinha amizade com ele! Por isso, podemos intuir que algo deveria haver chegado aos ouvidos do procurador romano, já antes dele se encontrar frente a frente com o Cristo.
Pilatos havia se intrometido demais nos assuntos que diziam respeito somente aos Judeus. Talvez até por ter pressentido que por detrás da imagem da vinda do Messias Judeu como um chefe político, havia um mistério maior. E mesmo sendo apenas um observador do que acontecia na alma do povo Judeu, pode ser que ele tenha compreendido mais que os próprios Judeus o impulso espiritual do Cristo. E é nessa altura do dialogo entre Pilatos e Jesus, que ele tenta escapar da situação, dizendo não ser um Judeu. O Cristo não responde a fuga de Pilatos. Ele toma como tema para a fala seguinte, o que passou como um raio luminoso pela alma de Pilatos: o pressentimento da humanidade no pensamento messiânico. Por isso, Jesus fala as palavras grandiosas cheias de impacto: “Meu reino não é deste mundo!”
Essas palavras não são faladas frente ao povo, senão que “dentro” do palácio, frente e para Pilatos. E uma formula esotérica dos mistérios. Pilatos percebe que essas palavras despertam nele confiança. Ele não se fecha a atuação dessas palavras em sua alma.
Pois apesar de ser um romano, e ter uma idéia terrena de um reino, não lhe é estranho o pensamento de um reino que não é deste mundo. Por isso ele volta a perguntar:“Assim é, és Rei?”
E o Cristo confirma essa pergunta. Ele permite a Pilatos conhecer que ele é Rei no Reino da verdade:“Para isso vim ao mundo, para trazer e mostrar a verdade. Quem provém da verdade, ouve a minha voz!” (João 18:37).
Nesse momento, depois de ouvir essa frase esclarecedora do Cristo, revelam-se os limites de Pilatos. Como representante dos Homens atuais, que só conhecem a postura da dúvida e da resignação diante de realidades espirituais, responde Pilatos:“O que é Verdade?”
Esse dialogo, da primeira cena de “dentro”, tem muitos tons que não percebemos a primeira vista. O tema da situação política do povo Judeu, que se embaralha com a visão mística da vinda do Messias, mostra-nos as muitas variantes dos pensamentos quer viviam nesse povo. Desde a época da Babilônia, o Reino Judeu havia terminado. E o povo Judeu tornou-se cada vez menos livre. Houve só uma curta época, a dos irmãos Macabeus, onde o Reino Judeu voltou a existir por pouco tempo. Porém essa realeza não era ligada a linhagem da Casa de Davi. E mesmo os Reis da linhagem de Herodes, não eram de casa nobre, nem da linha de Davi, e nem Judeus. Eles eram árabes e estrangeiros que reinavam sobre os Judeus como déspotas, mercenários alocados como regentes pelos políticos romanos. Nos pensamentos dos Judeus, vivia um forte impulso para o resgate da Casa de Davi, a realeza e dignidade do povo Judeu. Esse reino, porém, deveria seguir a linhagem de sangue de Davi. Por isso, seguia-se com real interesse, quais eram as possibilidades de um descendente de Davi, pela linhagem de sangue, surgir para a ressurreição do reino de Israel. E quando Pilatos pergunta ao Cristo:
“És rei dos Judeus?”
Ele o pergunta com um sentido muito claro, e que correspondia ao pensamento Judeu sobre o Messias:“És tu, segundo a tua linhagem de sangue, um pretendente do trono de Davi?”
Nesse dialogo, estão palavras misteriosas, cujo sentido permaneceu oculto por quase dois mil anos, impedindo uma compreensão verdadeira dos evangelhos e do Cristo. Em meu livro “Infância e Juventude de Jesus”, eu ousei escrever sobre esses mistérios, segundo os esclarecimentos dados por Rudolf Steiner. Pois em verdade, o Jesus de Nazareth, que por três anos foi o “portador” do Cristo, e que está diante de Pilatos agora, não é descendente da linhagem real de Davi. E se o menino Jesus, segundo a linhagem descrita para ele, no Evangelho de Mateus, houvesse se desenvolvido normalmente, ele poderia pretender ao trono de Davi. O Jesus descendente da linhagem real salomônica, faleceu porém antes dos vinte e um anos. Cresceu e se desenvolveu o menino Jesus, que também descende da linhagem de Davi, porém da linhagem sacerdotal de Nathan. Por esses fatos, pode se entender o ódio de Caifás, pois pela sua linhagem, o Jesus de Nazareth, a quem manda prender, não poderia jamais ser um pretendente a Messias e ao trono. Pilatos não recebe resposta sobre a sua pergunta genealógica. A resposta que ele recebe, vai ao encontro de pensamentos que vivem em sua alma; pensamentos supra-pessoais a respeito do Messias. Sua reação resignada:“O que é Verdade?”
Encerra a primeira cena interior desse ato.
O SEGUNDO ATO
Nós vemos Pilatos e Jesus surgirem outra vez sobre as escadarias, frente ao povo. O segundo ato do começa. Pilatos diz:“Não encontro culpa nele!”
Esse ato central é de uma grande dramaticidade. Ele consiste em três tentativas de Pilatos, para libertar Jesus. No recrudescimento das acusações, Pilatos fica sabendo que Jesus é Galileu, pertencendo ao reinado de Herodes. Com isso, tenta libertar Jesus. Envia-o a Herodes. Isso interrompe o julgamento; mesmo porque, Herodes vivia em seu palácio sobre o monte Sião, não muito longe do Cenáculo e do palácio de Caifás. Para isso, teria Jesus que fazer outra vez o mesmo caminho que havia feito antes, ao ser trazido por Caifás ao palácio de Pilatos.
Nessa primeira parte do segundo ato, surge a imagem debochada por Herodes e Herodiades, das vestes brancas colocadas em Jesus. Nessa imagem exterior, luze o mistério do Cristo etérico. Os Homens não sabem o que fazem, eles são instrumentos da “vontade-reveladora”, que dirige em todos os detalhes o Drama de Mistério.
A segunda tentativa de Pilatos, para libertar Jesus, foi oferecer a multidão a possibilidade de libertar um prisioneiro. Era um costume da Páscoa dos Judeus, que o procurador romano libertava um prisioneiro, como “ato de graça”. E para isso, Pilatos coloca a escolha para a multidão entre Barrabás, um assassino, e Jesus. E por três vezes faz a pergunta:“Qual dos dois devo libertar?”
Pilatos pensa como um Homem. Ele havia percebido, que algumas vezes, a multidão se abria à percepção do Cristo, e se voltava a ele em uníssono. Não havia a multidão louvado a Jesus como Messias, quando no ultimo domingo, havia entrado em Jerusalém montado em um jumento? A multidão havia naquele dia entoado o Hosiana em êxtase. Pilatos pensava que a simpatia do povo por Jesus pudesse ser outra vez vivificada e inflamada. O que ele não percebe é que está no centro de uma luta espiritual, para além da compreensão da mentalidade do povo, e dele mesmo. Os dias, desde o Domingo de Ramos estão plenamente preenchidos desse “embate” espiritual. Um acontecimento importante desses dias, foi a “maldição da figueira”. Nesse acontecimento, o Cristo “seca” a figueira sem frutos, que inflama o povo em êxtase; as forças inconscientes e inebriantes da clarividência. O povo, que estava em êxtase, por um momento, entusiasmado pelo Messias, agora está possesso pelo ódio ahrimanico, que é insuflado pelos fantasmas de Caifás. Pilatos é obrigado a aceitar que errou. Pois o povo pede liberdade para o assassino Barrabás. E quando pergunta-lhes:“O que devo fazer com esse?”
Ressoa, ao invés do cântico de louvor “Hosiana”, de novo o grito rude e forte:“Crucifique-o! Crucifique-o!”
Suas três perguntas, tentativas de reverter a situação a favor de Jesus, provoca ainda mais ódio, e a resposta do coro de demônios, que cantam pela multidão possessa e fanática.
O Evangelho de Mateus coloca, no meio desse ato, uma cena curta , que nos mostra o desespero e a insegurança de Pilatos. Procla, a esposa de Pilatos, envia-lhe um mensageiro. Ela quer que Pilatos não tome nenhuma decisão pela morte de Jesus. Na natureza estranha da lua cheia, onde demônios e pressentimentos passeiam pelas paisagens, teve Procla um sonho. Ela sonhou com o Cristo, e ficou impressionada pela sua grandiosidade divina. Aquilo que luziu por um instante na alma de Pilatos, surge em Procla em toda a sua calma e clareza. Aqui surge uma simetria muito interessante. Assim como por detrás de Caifás está Hannás, o Homem-Ahriman; e por detrás de Herodes a figura de Lúcifer em Herodiades; por detrás de Pilatos, como que reforçando a sua humanidade, está Procla, que sonha e tem uma revelação da verdade sobre o Cristo.
Pilatos tenta libertar Jesus pela terceira vez. Essa é a terceira cena de “dentro”. O Procurador entrega Jesus para ser torturado, e os soldados colocam um manto púrpura em seus ombros, e uma coroa de espinhos em sua cabeça. Pilatos e os soldados “brincam” com os símbolos da iniciação, com os sinais dos graus da iniciação nos Mistérios. Cada vez mais a atuação dos Homens torna-se irracional. Cada vez menos sabem o que fazem. Talvez tenha contribuído para isso os ventos quentes e abafados que sopram nesses dias do deserto, chamado de Chamsim. As forças da consciência humana mostraram-se insuficientes. Pilatos talvez tenha pensado em vivificar, como ultima tentativa, a simpatia do povo por Jesus, pela compaixão. Porém, quando trás a Jesus torturado, vestido com o manto púrpura, e coroado de espinhos, faz algo que a sua compreensão não podia abarcar. Ele introduz uma imagem poderosa na história da humanidade. Só a imagem do Cristo crucificado seria mais poderosa e forte do que essa, porém turvada pela cortina de escuridão que se colocou diante da luz do sol. Quando Pilatos diz:“Vide, o Homem!”
Apela ele a muito mais do que a simples compaixão humana. Ele apela ao mais profundo sentido de humanidade, que “jaz” profundamente adormecido nos fundamentos da alma humana. Todo um desenvolvimento histórico será necessário na humanidade, para que essas palavras sejam entendidas! Mesmo essa tentativa de Pilatos, usando de elementos dos Mistérios fracassa. Mesmo agora, ouve-se somente os gritos possessos da multidão que exige a morte do Cristo.
REALEZA E MESSIANISMO
O terceiro ato do Drama começa com uma cena “de fora”. Pilatos faz agora um gesto simbólico. Ele lava as suas mãos em sinal de que não é responsável pelo que acontece. Esse gesto simbólico, cujo protagonista é a multidão, vai além de sua compreensão. Na missa romana, o sacerdote, lava as suas mãos em um certo momento. Cada um desses gestos, nos atos que seguimos, é uma revelação dos Mistérios. Revelação de leis espirituais, que eram conhecidas nos Templos de Mistérios, e que no futuro serão outra vez conhecidas, quando a humanidade se preencher da vida que emana das substancias dos Mistérios.
O povo responde, demoniacamente possesso, à lavagem de mãos de Pilatos:“Seu sangue venha sobre nós, e sobre nossas crianças!”
Essa era a resposta pelo ato de Pilatos. Que um outro assumisse a responsabilidade pela morte de Jesus. Sem saber o que dizia, grita o povo possesso a maldição sobre si mesmo.
A tensão que surge por esse ato, e o povo endemoniado, faz com que os Sumo-sacerdotes tentem reverter à situação, dizendo:“Esse Homem fez-se Filho de Deus!”
Jesus havia respondido a Caifás, quando este havia-lhe perguntado se era Filho de Deus, com as palavras apocalípticas sobre o Filho do Homem. Agora porém, gritam os comparsas de Caifás a única verdade que lhes sai da boca em todo o processo. Pois mesmo o adversário Ahriman é obrigado a reconhecer a verdade sobre o Cristo. Pilatos é tomado de pavor. Ele entende a acusação dos Sumo-sacerdotes. Agora ele sabe, que Jesus é o mais elevado Guia Espiritual da Humanidade. O César em Roma, também exige para si o titulo de Filho de Deus. Pilatos sabe o porquê disso. Ele sabe que as varias iniciações do César, lhe dá poder e permite-lhe essa exigência. O escritor Strindberg relata em sua peça de teatro, como Pilatos luta pela dignidade romana, abominando a exigência de César como Deus e a decadência dos Mistérios. Pilatos entra em um grande conflito com a sua humanidade. Como um alto funcionário, era obrigado a ser um instrumento da vontade de César. Como Homem, não podia deixar de criticar e contrariar a maneira como o César Tibério regia o mundo, vivendo em loucuras na ilha de Capri.
E depois de ouvir a verdade espiritual sobre Jesus, pelos Sumo-sacerdotes, entra de novo com Jesus para o lado de “dentro” do palácio. A terceira cena “oculta” começa.
Pilatos sabe, agora, que está diante de um Homem “iniciado”, um Mestre dos Mistérios, que tem uma tarefa divina diante da humanidade. Essa certeza o leva a fazer a pergunta a Jesus:“De onde vens?”
Pilatos não pergunta sobre a origem terrena e a família do interrogado. A sua pergunta dirige-se ao “encargo espiritual” do interrogado. Ele deseja saber, de onde vem o “encargo” que Jesus deve cumprir entre os Homens. E nesse momento, Jesus cala-se. Essa pergunta não pode ser respondida. Não há nenhum Homem na terra que pudesse dar uma tarefa a Jesus. Pois o “encargo” pelo qual ele vive e age, não é desse mundo. Pilatos diz, em seu estupor, por qual poder e representação ele age. Ele é, mesmo sendo funcionário romano, mais do que um cumpridor de ordens burocráticas. Ele diz:
“Não sabes, que eu tenho o poder de te crucificar, e também o poder de te libertar?”
E mais uma vez recebe Pilatos uma resposta sobre-humana e grandiosa do Cristo:“Tu não terias nenhum poder sobre mim, não te fosses dado do mais elevado!”
Muito além de um “encargo” humano está a decisão divina de descida do Cristo a terra, para cumprir com uma decisão espiritual. Pelas palavras do Cristo, Pilatos passa a compreender o destino de Jesus, dirigido pelos deuses, envolvidos na entrada do Cristo na humanidade. É como se Pilatos fosse a priori absolvido. Ele, porém é tocado profundamente pela grandiosidade divina do Cristo. E toma, por isso, uma decisão. Deixa Jesus do lado de “dentro” do palácio e apresenta-se só diante do povo, no alto das escadarias do palácio. Mais uma vez tentará libertar Jesus, tentando sua última possibilidade. Os comparsas de Caifás, porém triunfam mais uma vez. Eles colocam-se ao lado do Culto a César, mesmo que isso signifique a morte súbita da fé no Messias. E gritam a Pilatos:“Se o libertares, não és mais amigo de César. Pois quem faz-se a si mesmo Rei, é adversário de César!”
Pilatos toma agora uma decisão. Ele não fala mais, senão cumpre um ritual do estado romano perante o povo. O que ele faz, é uma curiosidade histórica, que até hoje não foi compreendida, nem levada a sério em sua amplidão. Para falar o “Juízo” sobre o processo, Pilatos senta-se sobre a Cátedra, no lugar chamado Gábata, que quer dizer: “o lugar elevado”. Ele fala como funcionário, usando o seu poder de procurador, como representante de César. Todos olham tensos, para seus lábios. Que “Juízo” falará ele? E Pilatos fala, em poucas palavras algo estranho e de significado “oculto”:“Vide, vosso Rei!”
Suas palavras são um ato político amplo e histórico. Ele toma para si o poder de restituir a realeza ao povo Judeu. Ele entroniza Jesus como Rei dos Judeus. Ele fundamenta seu ato, no fato que todo Rei, entronizado pelo poder romano, não contradiz a César. Ele está disposto a criar um poder paralelo, dentro desse protetorado romano, dividindo o seu poder romano com um Rei Judeu.
Essa decisão de Pilatos, não poderia ser compreendida por pensamentos humanos. Há algo irreal nela. E mesmo que o povo não houvesse reagido com ódio contra ela, ela não seria possível de ser cumprida. Mesmo porque havia um grande abismo entre a decisão de Pilatos, e o destino do Cristo perante a humanidade. Pilatos, mesmo aqui, mostra que não sabe o que fazer. Ele está perdido, sem condições de tomar decisões acertadas diante do destino e das decisões tomadas pelos deuses. Pelo desespero, o calor, a turba possessa diante de si, e sua incapacidade de compreender o destino do Cristo, toma a curiosa decisão de tornar a Jesus Rei dos Judeus.
A multidão exige outra vez a crucificação de Jesus. E os seus gritos eram tão fortes e pavorosos, como se os infernos houvessem se aberto e legiões de demônios esgoelassem, fora de si. Pilatos tenta uma última pergunta:“Devo crucificar vosso Rei?”
A resposta que lhe vem ao encontro é curta e precisa:“Não temos outro Rei, senão a César!”
Esse grito do povo registra um fato histórico. O povo Judeu repudia e abjura de sua esperança messiânica. O processo de Jesus chega ao seu final com a renuncia judaica ao seu Messias. Esse é em realidade o “suicídio” do judaísmo.
Esse fato nunca foi claro e conscientemente reconhecido. A partir desse momento, os fatos se desenrolam sem a participação dos envolvidos. Uma espécie de consciência mediúnico-sonolenta, toma posse de Pilatos e dos saduceus de Caifás. Mesmo os discípulos de Jesus entregam-se a um sonambulismo; menos o discípulo a quem Jesus amava.
Existe um “esboço dramático” de Hans Künkel, com o titulo de “Caifás. Uma paixão Joanina”. Nele, Pilatos tira as conseqüências das últimas palavras dos Judeus:
Caifás – (Um grande silêncio. A multidão se calara.) “Ele se diz o Messias, ou seja o Rei Oculto. O Messias Judeu é adversário de César!
Nós não temos nada que ver com o Messias, e o abandonamos.”
Pilatos – “É verdade? Entregai vosso Messias a Roma? Desistis de vossa redenção?”
Nenhuma resposta. O silêncio permanece preenchendo o espaço.
Pilatos – Vos submeteis ao poder romano? Desistis realmente de clamar pelo Messias, rogando por salvação?
Os Fariseus e o povo se afastam, pois não conseguem responder. Caifás permanece só perante Pilatos. O silêncio cresce.
Pilatos – “Estais dispostos a me entregar, daqui para a frente, todos os que clamarem pelo Messias, para serem por mim julgados? Aceitai finalmente que o Messias é adversário de César? Vossas traições não serão mais escondidas por vossa fé no e Messias?”
Caifás jura o repúdio ao Messias, com as palavras:
“Nós não temos outro Rei, senão a César!”
Künkel chama a atenção, mesmo que unilateralmente, para a amplidão trágica desse drama. O que ele não leva em conta, é a incapacidade de clareza que se apossa desses Homens nessa Sexta-feira Santa. O pensar e o agir humanos estão baixo um elemento supra-pessoal. Aquilo que é dito e feito nesse momento, não provém do conteúdo individual da alma dos envolvidos. O destino da humanidade impera e atua através dos Homens, que na maioria das vezes não sabem o que fazem. Por isso, toda a humanidade está presente e é co-autora na culpa, quando Pilatos não sabe mais o que fazer e entrega Jesus a multidão odienta e inimiga, para que o preguem na cruz.
O DESTINO DE PILATOS
O destino de Pilatos depois do Gólgota mostra-nos que o terremoto que sacudiu a terra desde a manhã da Sexta-feira Santa, até o domingo de Páscoa, ainda repercutiu longamente no âmbito das almas humanas. Por Pilatos, vemos a dinâmica do drama de Páscoa atingir o centro do reino dos Césares.
Depois de ter-se envolvido de muitas maneiras com o acontecimento do Gólgota, Pilatos ainda permaneceu três anos em Jerusalém como procurador. Depois disso, foi destituído por Tibério. Sobre os motivos que levaram a sua destituição, existem diversas histórias. As crônicas históricas, que não ligam seus fatos ao destino do Cristo, relatam que Pilatos tornou-se violento e odiado, tendo induzido por sua violência, os vários levantes de grupos Judeus contra os romanos. As lendas, cujo teor imaginativo muitas vezes necessita de um conteúdo histórico para clarear-se, relatam a destituição de Pilatos por ter se envolvido com o Drama do Gólgota. O próprio Pilatos teria enviado uma crônica sobre o processo de Jesus ao César Tibério. Tibério, porém teria ouvido falar de Jesus, e havia pedido que o trouxessem a ele, para que pudesse ser curado de sua doença. E ao descobrir que Jesus havia sido crucificado, tomou-se de ódio contra Pilatos. Pilatos foi chamado a Roma. A lenda conta, que o ódio de Tibério se amainou ao ver Pilatos, pois esse vestia a túnica de Jesus. Quando, porém, foi-lhe ordenado que aparecesse diante do César com suas próprias vestes, caiu sobre ele à tempestade de fúria do César. Pilatos foi destituído e caiu em desgraça diante de Tibério. Tibério faleceu no ano de 37, sem a razão, e com o corpo apodrecido pela lepra. Pilatos ainda viveu até o ano de 39. Ele fora banido para a região do lago de Genf, onde veio a falecer. Seus restos mortais foram lançados no rio Tibre, em Roma e depois no rio Reno, na França. Todas essas tentativas porém falharam, pois quando seus restos mortais tocavam as águas, levantavam-se violentas tempestades e ondas. Assim foi que lançaram seus restos mortais no “lago dos quatro bosques”, em cujas águas o “Monte-Pilatos” se espelha.
Por detrás dessas lendas sobre Pilatos, está uma indicação de Rudolf Steiner, que disse: “por detrás de toda a alucinação, pelas iniciações dos Césares, havia um pressentimento sobre a existência e divinitude do Cristo. Assim como os demônios são os primeiros que reconhecem o Cristo na terra, os Césares tinham vivências da existência do Cristo, em meio a alucinações e loucuras; antes mesmo que outros as tivessem.”
Compreende-se que os Césares não tinham condições de compreender com clareza as conseqüências disso para a humanidade. Porém, chegavam a pensar como romanos: em conquistar o Cristo para o Panteão romano, e colocar a sua força, a sua divindade e o seu poder a serviço dos cultos aos Césares. Claro surge esse motivo em uma lenda chamada: “São João diante da Porta Latina”:“É necessário saber, que os Césares não perseguiam os cristãos porque esses pregavam sobre o Cristo. Pois os romanos não repudiavam a nenhum Deus. Simplesmente os cristãos eram perseguidos, porque o Cristo havia-se declarado Deus, sem a autorização do Senado Romano; e isso era o que Roma não podia aceitar. Sobre isso podemos ler na História Eclesiástica, que Pilatos enviou uma carta sobre o Cristo ao César Tibério, e Tibério queria que todos os romanos tornassem-se cristãos. O Senado Romano, porém recusou-se a aceitá-lo, pois o Cristo havia se tornado Deus sem antes haver consultado e pedido autorização do Senado romano”.
A tragédia, na qual encerra-se a vida de Pilatos, mostra a sua humanidade.
Essa tragédia mostra-nos Pilatos como um dos mais importantes personagens desse Drama de Mistério, e que ficou profundamente impressionado com esses acontecimentos. Cada um de nós, Homens, é um Poncio Pilatos e ver-se- á um dia conduzido ao “Limiar da Decisão”. E quando a lenda nos conta da caminhada dos restos mortais de Pilatos, primeiro para Roma, depois para a França e depois para a Europa central, mostra-nos o caminho que tomou o próprio Impulso do Cristo na história da humanidade.
EMIL BOCK (Sacerdote +)
É uma marca interessante na biografia de Emilio Bock, que a sua vida se estende de um domingo a outro. Ele nasceu no dia 19 de maio, domingo de Ascensão, do ano de 1895; e faleceu no dia 6 de dezembro, o segundo domingo de Advento do ano de 1959. E quando a noticia de seu falecimento chegou aos ouvidos dos Homens que o conheciam, surgiu o pensamento comum: “aqui termina uma vida, aos 65 anos, prematura e incompleta.” Muitas coisas começadas por Emil Bock não puderam se terminadas. Muitas coisas planejadas não puderam ser executadas. Sua obra literária, apesar de ter um grande volume de livros lançados, não havia ainda sido completada e nem revisada.
Quem porém, olhar com vagar interesse, e cuidado amoroso a obra desse fundador da Comunidade de Cristãos, pode perceber quão melancólicos são os pensamentos descritos acima. A própria vida de Emil Bock, com o seu nascimento e a sua morte, mostra-nos uma simetria de composição coerente e viva. Por isso, a própria vida substitui aqui, o que seria considerado mais importante: a obra!
Quem conhece o desenrolar das fases da vida desse Homem, sabe que nelas, encontram-se sinais que expressam, ao mesmo tempo, algo pessoal e algo que transcende isso com a força do supra-pessoal!
Três fases nos mostram isso mais claramente. A primeira, com a infância e juventude, até o período da primeira Guerra, com um ferimento mortal, em 1914.
A segunda fase, com a mudança para a cidade de Berlim, e o encontro com a Teologia, na pessoa de Frederico Rittelmeyer, e os seus estudos universitários de Teologia. A essa fase junta-se o importante passo e decisão de ser co-autor da fundação da Comunidade de Cristãos. E isso juntando-se ao já sexagenário Rittelmeyer, sendo o próprio Emil um jovem de vinte e pouquinhos anos.
A terceira fase de sua vida está intimamente ligada a Comunidade de Cristãos, sendo que a ela pertence também a maior perda de sua vida: o falecimento prematuro de sua esposa. Assim, a terceira fase de sua vida tornou-se a própria história da Comunidade de Cristãos. Emil viveu para o trabalho, e a Comunidade tornou-se a sua família e o seu destino. A partir dessa sua decisão, e da perda irreparável, o destino transformou o que seria um caminho pessoal, em um arquétipo, um caminho supra-pessoal. O Homem e o seu trabalho, tornam-se um só.
Nas traduções de textos de Emil Bock, surge ao tradutor sempre de novo a relação íntima e forte dos pensamentos do autor, com os do próprio gênio inspirador da Renovação dos Sacramentos do Altar. Por isso esses textos contém força e atualidade.
PARA FINALIZAR
Seja lembrado mais uma vez, para finalizar, os momentos positivos sobre os quais nos foi possível decorrer na primeira parte do artigo: os portais para o mundo espiritual se abriram de várias formas. Acontece um novo “ancorar” da consciência humana em vivências espirituais. Essa expansão do horizonte da consciência humana é necessária para podermos ir ao encontro da sombra, a qual tratamos nesse artigo.
A participação mais importante que temos a fazer, é cultivar os impulsos espirituais que nos foram confiados, com inquebrantável paciência e fidelidade. Eles não desapareceram com as catástrofes que ocorreram na Europa central, o que poderia muito bem haver acontecido. Se mantiveram intactos, desenvolvendo sempre a sua atuação na celebração do Ato de Consagração do Homem e dos sacramentos. A direção espiritual do homem e da humanidade continua.
Hans-Werner Schroeder (sacerdote).